segunda-feira, 26 de agosto de 2019

Gestão de Adoção de Mudanças: sua importância em um mercado em constante evolução (Parte I)

Palavras-chave: gestão de adoção de mudanças, pessoas, empresas, melhoria de negócios, cultura corporativa, gestão de projetos
Na era digital, nenhum produto é perene, nenhum cliente está definitivamente fidelizado, nenhum modelo de negócio está a salvo do contínuo avanço por parte de seus competidores. As empresas devem adotar um padrão de mudança constante em seus serviços, produtos e canais para que não sofram disrupção e, em última instância, perda de relevância ou até mesmo eliminação do mercado.
Em tal ambiente, uma das disciplinas mais importantes em qualquer empresa no processo de Transformação Digital é a capacidade não apenas de absorver, mas de promover e tirar o máximo proveito das novidades que são inseridas em seu contexto de negócios. Refiro-me à Adoption and Change Management, ou Gestão de Adoção de Mudanças.
Neste artigo, meu propósito é explicar esse conceito, expor alguns dos motivadores para sua adesão pelas empresas – em especial as que estão em mudança – e por que essa visão deve estar presente em projetos de transformação desde a sua concepção.

1. Panta rei

Este aforismo, resgatado por Simplício da Cilícia a partir da obra do historiador grego Heráclito de Éfeso, traduz-se como "tudo flui", "tudo se move". Uma pessoa nunca se banha duas vezes no mesmo rio: a massa de água muda, as pequenas folhas carregadas pela corrente são outras, até a temperatura em cada momento pode não ser a mesma.
Talvez nunca em um momento da história do desenvolvimento do mercado esta frase tenha sido tão atual, ou pelo menos se demonstrado de forma tão rápida. A facilidade de comunicação entre as pessoas, a automação de processos e o barateamento da matriz produtiva e comercial nascidas com a ampla disseminação da computação corporativa e pessoal, culminando na Internet, levou a que as empresas nunca encarassem uma exigência tão grande de permanente atualização e mudanças em suas atividades, organizações e propostas de valor.
Entretanto, a mudança é algo que sempre introduz, no melhor dos casos, uma grande necessidade de adaptação organizacional e, no pior, principalmente em empresas tradicionais, ansiedade e resistência na equipe, não raro fazendo com que as novidades tenham seu impacto diminuído em relação ao plano inicial ou até mesmo sendo dispensadas em detrimento do plano original. Não quero repetir, como já é de conhecimento e senso comum, que a empresa é um conglomerado de pessoas reunidas em torno e em direção a um mesmo objetivo, e como tal é nas pessoas que reside a sua capacidade de realização.
Existem algumas formas de fazer com que a equipe se ajuste às mudanças. Na Amazon, por exemplo, Jeff Bezos instituiu o famoso Bezos Mandate, um conjunto draconiano de regras à sua equipe de desenvolvimento, quando implantou suas novas diretivas para a construção de software [1]:
  1. Todas as equipes irão, de agora por diante, expor seus dados e funcionalidades através de interfaces de serviço.
  2. As equipes devem comunicar-se umas com as outras por meio dessas interfaces.
  3. Não haverá outra forma de comunicação entre processos permitida: sem links diretos, sem leituras diretas do armazenamento de dados de outra equipe, nenhum modelo de memória compartilhada, nenhum backdoor. A única comunicação permitida é através de chamadas de interface de serviço pela rede.
  4. Não importa qual tecnologia eles usam: HTTP, Corba, PubSub, protocolos personalizados, etc. Bezos não se importa.
  5. Todas as interfaces de serviço, sem exceção, devem ser projetadas do zero para serem externalizáveis. Ou seja, a equipe deve planejar e projetar para poder expor a interface para desenvolvedores no mundo externo. Sem exceções.
  6. Qualquer um que não fizer isso será demitido.
É claro que nem todas as situações de mudança devem ser tratadas desta maneira. Apesar da mesma intenção de ganhar mercado e gerar lucro, empresas possuem culturas distintas e por consequência devem endereçar a situação de formas diferentes.

2. Barreiras comuns à adoção da mudança

Existem diversos tipos e naturezas de obstáculos que podem se interpor a um processo de mudança: 
  1. Percepção de alterações negativas no status quo: ou seja, pessoas que se sentem confortáveis com a situação atual e creem que as alterações criarão dificuldades em seu trabalho, inclusive com a perda do emprego. De fato, há casos em que colaboradores aceitam uma compensação menor em empresas "estáveis" (i.e., que raramente passam por mudanças).
  2. Desconhecimento sobre o estado atual da empresa: a percepção de estabilidade em relação à situação atual muitas vezes é decorrente de uma ignorância a respeito da real situação da companhia, que pode alcançar inclusive cargos gerenciais. Como consequência, muito projetos de renovação corporativa são planejados e executados sem um exame detalhado de seus processos e cultura.
  3. Integração da área alterada ao restante da companhia: em muitas vezes, a mudança restringe-se a uma parte da empresa, e muitos dos processos e pessoas que se comunicam com as demais áreas sofrem alterações. Não raro, colaboradores de ambos os lados tentarão contornar os novos procedimentos e continuar a agir "como sempre funcionou". 
  4. Má experiência com situações anteriores de mudança: seja na própria empresa ou em empregos anteriores, a memória de mudanças malsucedidas ou conturbadas persiste, e alguns colaboradores creem que não há nada neste novo processo vá ser diferente.
  5. Motivações políticas: a mudança, com raras exceções, leva à criação, troca, eliminação e/ou redefinição de cargos dentro da empresa. Pessoas com posição influente podem resistir a uma eventual perda de poder, mesmo que apenas percebida, ou à geração de adversários políticos. 
De uma forma geral, estas barreiras se manifestam em um nível individual, algo que mais regularmente que o desejado é neglicenciado no planejamento de projetos de alcance organizacional. A Gestão de Mudanças, em muitos deles, restringe-se a treinamento e comunicação interna. Embora estes fatores sejam fundamentais ao sucesso, estão longe de garantir uma adoção tranquila e que traga o retorno esperado sobre o investimento.
Caso de Mudança: Implementação de ERP/CRM
A implementação de sistemas que afetam extensivamente os processos mais vitais das empresas, como ERPs e CRMs, é um exemplo clássico, mas não único. Tomemos como caso um processo como Lead-to-Cash. Sua automação leva à padronização de diversos passos, como a criação e inserção dos leads em um formato específico, acompanhamento do ciclo de vendas em ferramentas centralizadas e passos bem definidos para a conclusão do processo. Muitos executivos de vendas se queixam que a ferramenta os "atrapalha" e continuam "tirando seus pedidos" usando canais não padronizados, como telefone ou e-mail, por vezes usando até rascunhos ou documentos não oficiais em papel, e realizando posteriormente – algumas vezes depois do acordo já concretizado – o tal "lançamento no sistema". Por quê?
O motivo é frequentemente porque, embora a companhia como um todo se beneficie da visibilidade do pipeline e da taxa de conversão, do planejamento de médio prazo tanto das metas de vendas como (no caso de empresas que vendem produtos físicos) do provisionamento de produção, de uma maior assertividade em campanhas de marketing e da maior segurança na consecução das vendas, o processo para a conquista dos objetivos individuais dos vendedores foi, em sua percepção, piorado, com uma menor flexibilidade na negociação com o cliente, uma curva de aprendizado julgada "desnecessária" para o exercício de sua função e, em um português bastante claro, "uma perda de tempo". Nada que não os ajude diretamente a fechar uma venda e por conseguinte obter a devida comissão e o atingimento da meta individual trimestral é merecedor de maior atenção.
Os vendedores não estão errados. Toda uma estrutura de incentivos foi montada para que eles se empenhassem em gerar mais receita para a empresa. Se a mudança na forma de eles realizarem seu trabalho diário não tiver o acompanhamento do plano de incentivos, se esse plano não for claramente comunicado, se o novo processo não contemplar a flexibilidade exigida, e se brechas forem deixadas para que se permita o contorno ao novo processo, isto fatalmente ocorrerá. 

3. Trabalhando a resistência

Existem várias ações a ser tomadas para lidar com a resistência à mudança. Algumas mitigam a própria ocorrência de fatores adversos, outros preparam o terreno para aqueles casos inevitáveis em que a resistência deve acontecer. Hiatt e Creasey apontam alguns dos princípios fundamentais para a Gestão de Mudanças [2]:
  1. Há uma razão para a mudança; 
  2. Mudança organizacional requer mudança individual; 
  3. Resultados organizacionais são o efeito coletivo de mudanças individuais; 
  4. A Gestão de Mudanças é um framework para gerenciar o lado humano da mudança; 
  5. A Gestão de Mudanças é aplicada para realizar os benefícios e resultados desejados da mudança.
Em suma, é necessário uma compreensão dos altos executivos e gestores do projeto ou programa de transformação de que, tão importante quanto o planejamento da implementação em si, é a criação de um conjunto sistematizado de atividades que atenda a como os usuários, clientes e outros envolvidos devam ser considerados.
Hiatt entendeu que a mitigação da resistência e a consequente administração bem sucedida das mudanças decorrentes de um projeto de abrangência organizacional passa por 5 fases, que devem ser consideradas em ordem – ou seja, problemas em uma fase anterior devem ser sanados antes de passar-se à seguinte. Este framework é denominado ADKAR®, pelo acrônimo de seus termos em inglês [3]:
  1. Consciência (Awareness): fazer o colaborador reconhecer e entender que existe a necessidade de mudança
  2. Desejo (Desire): criar os incentivos e a motivação para que o colaborador aceite e participe na mudança. Esta visão reflete-se no termo WIIFM ("What is in it for me?")
  3. Conhecimento (Knowledge): prover ao colaboradores a informação, o treinamento e educação necessários para agir no ambiente modificado
  4. Habilidade (Ability): empoderar os colaboradores para implementar o conhecimento adquirido
  5. Reforço (Reinforcement): construir os fatores internos e externos que sustentarão a mudança, como compensação, reconhecimento e satisfação pessoal
    Caso de Mudança: Implementação de ERP/CRM
    Em nosso caso, vamos analisar o comportamento de um vendedor. Criemos um exemplo da classe de envolvidos que queremos investigar utilizando o conceito de persona, que consiste em uma representação de um individuo desta classe como uma pessoa fictícia, mas que carrega características tangíveis e bastante próximas das de uma pessoal real:
    José é um executivo de vendas de 45 anos. Ele tem 25 anos de experiência, 10 dos quais na presente empresa. É bastante versado em seu método de vendas e já carrega a bagagem de 3 empregos anteriores na área. José acumula diversos prêmios de atingimento de mais de 120% da meta ao longo da sua carreira e apenas em 3 ocasiões ele não cumpriu tal meta, uma delas resultando em ele ter se movido para outra companhia. Sua tática principal consiste em um relacionamento próximo e sem burocracia com seu cliente, oferecendo propostas feitas sob medida e com rápido tempo de resposta, por vezes "pulando passos" da metodologia de vendas. Como os resultados de José são frequentemente satisfatórios, sua direção vê sua atitude como "ousada" e "eficaz".
    Com a implantação do novo CRM, José recebe a notícia de que seu processo será automatizado, e ele poderá inserir seus leads e prospectos no sistema desde o início, acompanhar o funil de vendas e a geração de contratos e ordens; porém, não serão aceitas transações realizadas fora do sistema. José sente que seu trabalho e eficiência, baseados em relacionamento, serão afetados pela necessidade de se usar o sistema, e que certas ações que ele normalmente executa em seu dia a dia, como avançar com o processo de negociação baseando-se na confiança do cliente, sem um registro anterior formal do lead, poderão ser comprometidas.
    Logo, neste exemplo, José já passou da fase de Consciência, pois entende o porquê do CRM e seu benefício para a empresa como um todo, mas não vê como esta mudança no processo pode ser vantajosa especificamente para ele; logo continua, na medida do possível, realizando suas atividades da maneira como sempre o fez.

    4. Gerenciando a mudança desde o início

    Como já mencionado, a prática da Gestão da Adoção de Mudanças deve ser considerada desde o planejamento do projeto de transformação. Existem diversos riscos envolvidos em se iniciar suas atividades muito depois do kick-off:
    1. Projetos que introduzem grandes mudanças na empresa promovem melhoria dos processos de negócio. Ao se perder a chance de criar envolvimento e compromisso com as partes afetadas desde o início, aumenta-se o risco de se ter suporte e concordância dos colaboradores abaixo do nível satisfatório.
    2. Ao se iniciar as atividades de Gestão de Mudanças em conjunto com o projeto, consegue-se criar um planejamento e integração sem falhas com o processo de melhoria de negócios, e ambos caminharão lado a lado, oferecendo feedback um ao outro; por outro lado, começando-se mais tarde no projeto, o que ocorre é uma sobreposição das atividades de Gestão de Mudanças às atividades já em execução do projeto, criando, em vez de cooperação, competição pelos recursos de tempo e pessoas. Em tal circunstância, a experiência mostra que, em caso de disputa por recursos, raramente os gerentes de projetos cedem em favor da Gestão de Mudanças, pela pressão da entrega dos artefatos-alvo, e o resultado é que a mudança acaba sendo pobremente recebida pela empresa, mesmo com artefatos tecnicamente completos.
    3. Desta forma, é de grande importância que a estratégia de Gestão de Mudanças seja planejada pelo gestor adequado em conjunto com o gerente de projetos e os principais envolvidos já nas reuniões iniciais do projeto de transformação de negócios. Já nesta fase deve-se realizar as seguintes tarefas [2]:
    • Levantamento do escopo e da preparação (readiness) para a mudança
    • Levantamento de riscos e focos de resistência
    • Mapeamento dos principais envolvidos e patrocinadores
    • Preparação do time (interno e externo) para a Gestão da Mudança
    • Criação de um modelo de patrocínio com os líderes de negócio

    Conclusão

    Neste primeiro artigo, o foco foi expor a necessidade de uma disciplina de Gestão de Mudanças efetiva em qualquer projeto de larga escala que proponha alterações radicais no modus operandi de uma empresa, e como a excelência técnica e o cumprimento puro e simples de métricas de entrega de projetos não são suficientes para garantir que o resultado de negócios esperado seja atingido. Apresentou-se também um framework para apoiar a mudança, a importância de se começar o processo de Gestão de Mudanças concomitantemente com o inicio do projeto e algumas de suas atividades iniciais.
    Nos próximos artigos desta série, abordarei algumas das principais preocupações de gestores de mudança ao longo de projetos de transformação e como a mitigação dos riscos de resistência e adoção pode ser abordada em cada fase do framework ADKAR®.

    Sobre o Autor


    Alessandro F. Martins é um Estrategista de TI para Negócios Sênior com 21 anos de experiência em áreas abrangendo de Arquitetura Empresarial e Gestão de Processos de Negócio a Gestão de Programas e Projetos, consultoria para nível executivo de grandes empresas e aconselhamento para Inovação Digital.

    Referências

    [1]: Ross Mason: Have you had your Bezos moment? What you can learn from Amazon https://www.cio.com/article/3218667/have-you-had-your-bezos-moment-what-you-can-learn-from-amazon.html, no site CIO.com
    [2]: Jeffrey M. Hiatt, Timoty J. Creasey: Change Management: The People Side of Change, ISBN 978-1-930885615
    [3]: Jeffrey M. Hiatt: ADKAR: A Model for Change in Business, Government and our Community, ISBN 978-1-930885509

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