sexta-feira, 25 de outubro de 2019

Inteligência Artificial e Machine Learning: uma perspectiva realista

Cérebros eletrônicos e algoritmos: dois lados da mesma moeda

1. Dourando a Pílula?

Se há um assunto em voga, este é, sem dúvida, a Inteligência Artificial (IA, em seu acrônimo) e suas aplicações. É natural que o potencial revolucionário deste estágio da tecnologia seja comentado e até exaltado pelos mais entusiastas. Se para aqueles que vendem essas soluções é típico que se enalteçam seus “poderes miraculosos”, para os que irão comprar ou utilizar tais ferramentas pairam inúmeras dúvidas sobre o que é efetivamente IA e como ela impacta seus negócios e seu dia a dia.
De uma forma geral, o tratamento dado à Inteligência Artificial – e temas de Transformação Digital como um todo – pode gerar sinais conflitantes para tomadores de decisão do mercado. Existe um misto de ceticismo em relação ao novo, especialmente aquele vindo da área tecnológica, de encantamento com as novas possibilidades de negócio, e de receio que, no caso em que todo este hype seja verdade e o concorrente tome a dianteira em sua adoção, perca-se um espaço competitivo irrecuperável.

2. Percepção X Realidade

Vamos então diretamente ao ponto: a maior aplicação dentro da IA, na maior parte das vezes, para a maior parte das indústrias, restringe-se à categoria de Machine Learning (ou Aprendizado de Máquina, em português). Fazendo-se justiça, é correto afirmar que este termo é o mais divulgado dentro de todo o espectro de áreas da Inteligência Artificial, e de forma apropriada neste sentido.
Em simples termos, Machine Learning é a área da IA que trata de reconhecimento de padrões em massas (normalmente muito grandes) de dados, geração de modelos matemáticos/computacionais para identificação de tais padrões, e utilização desses modelos para classificação, predição, agregação ou reação a novas entradas de dados potencialmente desconhecidas, de forma a que não se necessite programar tais reações e correspondências de antemão, sendo desta maneira (e apenas neste sentido) aprendidas na forma dos referidos modelos.
​A Inteligência Artificial tem muitas áreas, mas apenas algumas são hoje amplamente exploradas de forma comercial
Sob esta perspectiva, torna-se fácil identificar algumas das aplicações mais comuns do Machine Learning em situações de negócio:
  • Análise preditiva: intrinsecamente ligada à Ciência e Análise de Dados, é utilizada na previsão de situações a partir de ocorrências históricas anteriores ou detecção de características em comum que agrupem dados em padrões. Para o primeiro caso, temos exemplos como Detecção de Fraudes, Análise de Churn e Classificação de Crédito. Para o segundo, identificação de grupos de consumidores de acordo com seus hábitos de compra.
  • Processamento de Linguagem Natural (PLN): identifica padrões de linguagem em cadeias de palavras, interpretando sua semântica e criando ações de resposta. Seu maior exemplo está em atendimento automatizado e tradutores automáticos
  • Processamento de sinais de áudio: identificação e classificação de fonemas e sua agregação, correspondendo-o a estruturas de linguagem mais complexas como palavras e frases. Aplicações normalmente associadas a PLN para assistentes automáticos (como Siri, Cortana e Google Assistant) e chatbots, e mecanismos de speech-to-text.
  • Visão computacional: pode apresentar duas vertentes: reconhecimento de padrões em imagens estáticas (seu principal conteúdo, por exemplo) e detecção de mudanças ao longo do tempo em uma sequência de imagens (processamento de vídeo). Tem aplicações em segurança, reconhecimento facial, tomada de ação baseada em imagens (p.ex, escolha de um determinado produto em gôndola), extração de texto em imagens e reconhecimento de escrita cursiva.
  • Robótica: em seu sentido mais estrito, a Robótica é uma área da Inteligência Artificial distinta do Machine Learning. Trata da aplicação de agentes físicos na realização de tarefas manipulando o mundo “real”. Entretanto, existe uma grande área comum, empregando elementos de praticamente todas as categorias acima descritas.
No final das contas, especificamente falando-se de Machine Learning, não existe mistério envolvido. Trata-se tão-somente de aplicações desenvolvidas para digerir quantidades gigantescas de dados, calcular probabilidades, funções, erros e distâncias, e depreender daí um modelo para gerar resultados a partir de novos dados observados. Nem mais, nem menos.

3. Perigos da Romantização

Como mencionado acima, em tese não haveria maiores questões em se utilizar os termos “Inteligência Artificial” e “Machine Learning” de forma intercambiável. Afinal de contas, este segundo é parte da primeira, e aquele mais disseminado no mercado e o mais palpável para o cidadão médio.
O problema acontece quando, por um apelo de mercado mais substancial, a metonímia é levada longe demais. Em sua concepção, e em sua imagem historicamente divulgada, a Inteligência Artificial de fato tem como motivador e norteador a busca de se prover computadores com qualidades humanas, envolvendo raciocínio, processos mentais, comportamento e desempenho humanos [3]. Russell e Norvig também compilaram, junto a importantes pensadores da IA, alguns conceitos importantes para estes autores:
Algumas definições de Inteligência Artificial, organizadas em 4 categorias [3]
Com o posicionamento de mercado comumente utilizado, Machine Learning passa a parecer sinônimo de Inteligência Artificial, e assim recebe sua carga semântica. E, definitivamente, enxergar Inteligência Artificial e Machine Learning como isto:
Isso é mais ou menos o que vem à mente pelo discurso executivo corrente sobre Inteligência Artificial...
é bem mais emocionante e certamente menos assustador do que isto:
...e isso é o que a máquina realmente faz em Machine Learning: mastigar números para encontrar padrões.
Ainda assim, o conjunto de fórmulas acima descrito é apenas parte da matemática utilizada em um dos algoritmos de classificação mais comuns em Machine Learning, a regressão logística, para descobrir o padrão sobre dados de clientes (representados por ) que são associados a uma determinada classificação – por exemplo, se o cliente deve ou não ter seu crédito aprovado (neste caso, representado pelo valor ; a letra significa a hipótese de um modelo matemático que represente a realidade). Apesar de definitivamente nada atraente, não é algo mais complicado do que muitas das funções usadas, por exemplo, em nosso bom, velho e cotidiano Excel. E o mesmo, levando-se em consideração um grau maior ou menor de sofisticação, pode ser estendido para rigorosamente todas as aplicações do gênero.
O grande ponto está na aplicação desta computação para situações de negócio. Por si só, simplesmente dizer que se adota Machine Learning não significa que se estaria utilizando "máquinas inteligentes" em nenhum sentido real e humano da palavra "inteligência", que isto levaria, por si só, ao estado da arte em modernidade, ou que este seria mais um passo em direção à rebelião dos androides.

4. Conclusão

De uma forma geral, existe uma tendência muito grande por parte de quem vende martelos a glorificá-los, colocando-os como indispensáveis para se construir as melhores mesas e cadeiras. Neste caso, os martelos parecem também construir casas, prédios e cidades, muitas vezes sem precisar de intervenção humana. Ao mesmo tempo, é criada uma certa dissonância cognitiva quando, aliado a este este discurso, na tentativa de romper a tradicional desconfiança com novas tecnologias por parte de executivos, invoca-se o eterno mantra "a inovação não deve nunca ser direcionada pela tecnologia, e sempre pelo negócio".
Em minha opinião, uma forma mais eficaz de mitigar o ceticismo seria tratar o Machine Learning pelo que ele realmente é: um modo de calcular certos dados para certas aplicações (ou como minha avó diria, "fazer conta") de uma forma que antes não se podia pela falta pura e simples de poder computacional e disponibilidade de certos métodos, e educar clientes e áreas de negócio sobre onde e como estas aplicações efetivamente fazem sentido e melhoram seu desempenho.

Referências

[1]: Bernard Marr -- What Is The Difference Between Artificial Intelligence And Machine Learning?, em Forbes: https://www.forbes.com/sites/forbesagencycouncil/2018/08/01/do-you-know-the-difference-between-data-analytics-and-ai-machine-learning/#3a8918cc5878
[2]: Vance Reavie -- Do You Know The Difference Between Data Analytics And AI Machine Learning?, em Forbes: https://www.forbes.com/sites/bernardmarr/2016/12/06/what-is-the-difference-between-artificial-intelligence-and-machine-learning/#7ed51bf72742
[3]: Stuart Russell, Peter Norvig -- Artificial Intelligence – A Modern Approach (3rd Edition), ISBN: 978-0-13-604259-4